quarta-feira, 1 de abril de 2009

Diegese - A Denúncia dos Gestos

Os dois homens deixaram o edifício onde morou Alberto sem pressas, tendo-se decidido ainda, dada a sugestão do senhor mais alto, por passar na casa Salão de Chá. A última passagem dos dois senhores pelo salão deixara o senhor mais alto bastante insatisfeito com o seu pedido de chá de sabor a maçã e, desde então, tinha vontade de provar um outro sabor mais exótico, tão bem lhe tinha falado o seu companheiro. O senhor mais baixo anui em ir, sem suspeitar sequer que esta volta ao salão tinha outro propósito além de tomar um chá: tratava-se antes de tomar outro chá. Não que tivessem um interesse especial em sentar-se na mesma mesa que ocuparam na primeira vinda ao Salão de Chá mas, como se encontrava ocupada por duas senhoras, optaram por uma das mesas vizinhas, a da esquerda. Hoje vou querer algo mais natural, disse o senhor mais baixo e, dirigindo-se à empregada, pediu um chá de canela. Pelo menos já sei que gosto, disse. Por sua vez, o senhor mais alto, depois de vasculhar no menu, pediu um chá preto de LapSang SouChong, pois na descrição dizia que era um chá com sabor fumado, fosse lá o que fosse. Assim que acabaram as suas bebidas, o senhor mais baixo informou que não se podia demorar muito mais, que tinha que ir, ao que o seu colega respondeu que sim, tudo bem, eu ainda fico um pouco mais então. Este ainda ficou recostado na cadeira a saborear o sabor fumado do seu chá algum tempo e, passados alguns minutos, levou a mão ao bolso e tirou o caderno que encontrara na antiga casa de Alberto. Colocou-o sobre a mesa e, quase com ar indolente, foi brincando, com ele, vendo que posições lhe pareciam melhor: se do lado direiro da chávena - agora quase vazia -, se paralelo aos bordos da mesa, se virado com a base para ele; brincava como que a adiar o abrir do caderno, que se tornava inevitável. Ainda antes de o abrir, pegou-lhe e folheou-o do inicio ao fim, permitindo-o a libertar um odor a folhas velhas, e escritas. Ao fazê-lo lembrou-se porém de uma vez, numa livraria, que não comprara um livro que lhe tinham aconselhado porque não gostara do odor das suas folhas. Era o Dr. Jivago de Boris Pasternak, que ainda não tinha lido. Por fim, abriu aleatoriamente o caderno numa das páginas iniciais.


«terça-feira, 27 de Abril
: [ilegível]

hoje, antes de regressar a casa, parei, inusitadamente, no Salão de Chá, mesmo em frente da minha porta. pedi um chá. encontrei por lá o meu vizinho de baixo, de quem desconheço o nome. encontrei-o uma vez na escadas do prédio, tendo-lhe dito bom dia por essa ocasião, sendo que desde então não mais voltámos a cruzar-nos, e a falar tão pouco. estava acompanhado de uma rapariga que tinha ares de ser um pouco mais nova que ele. achei-o algo estranho e inquietante. no final de beber o chá, despejou o resto do açúcar para dentro da chávena e continuou a mexer com a colher casualmente, e não para a direita, como fez com o chá. conheço poucas pessoas que mexam o chá para a direita. pensando bem, acho que também não o conheço a ele. por diversas vezes levou a mão à boca, ora a direita ora a esquerda, quando se ria um pouco mais alto. quando ameaçavam ficar em silêncio por vários minutos, a sua perna direita começava a mexer ciclicamente, denunciando o que parecia ser um leve incómodo da sua parte. por esta altura começava a mexer o açúcar com mais vigor também. creio que os silêncios o deixam desconfortável. [ilegível] é cheio de idiossincrasias o meu vizinho. o açúcar deixado na chávena, e o pacote enrolado em forma de palito; a chávena com a asa voltada para a janela e o pires sujo com a bebida; os guardanapos usados, juntos em forma de bola. reconhecê-lo-ia pela mesa onde tivesse estado: era uma forma de assinalar a sua presença.»

A última frase do texto era também ilegível. Ainda tentou decifrar o que estava escrito, mas em vão. Posto isto, fechou o caderno e meteu-o de novo no bolso, demorando-se em algumas das razões que tivessem levado Alberto, que vivera no anonimato do seu apartamento, a reparar no seu vizinho. Levantou-se, e apercebeu-se que também ele tinha despejado o restante açúcar para a chávena de chá.