quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Diegese - Os Girassóis de Fibonacci

Três dias se passaram desde a passagem dos dois homens pelo Salão de Chá.


Eram por volta das quinze horas quando fizeram soar a campainha do 3º direito, onde morava a antiga senhoria de Alberto. O prédio encontrava-se do lado oposto ao Salão de Chá, reparavam-no agora, que já conheciam o outro lado da rua. Então é aqui que morou Alberto?, perguntou em jeito retórico o senhor mais alto, enquanto se aproximava da porta e examinava com o olhar a fachada. Até então, este era um edifício em tudo igual a todos os outros, e poderia ser o edifício onde teria morado qualquer pessoa. Era assim que lhe pareciam os prédios e casas de quem ignorava quem os habitava. Agora, era o edifício onde morou Alberto.
Sim?, quem é?
, ouviram pelo intercomunicador. Boa tarde. Ando à procura de casa para alugar e vi no jornal que dispunha de um apartamento, gostaria de poder vê-lo, se possível, obrigado. Sim, tenho um apartamento livre de momento, suba que lho mostrarei, respondeu a senhora. Pela voz deveria andar pelos 50 anos, talvez mesmo mais, e morava sozinha desde algum tempo, poderia afirmá-lo. Um ruído arranhado e metálico era o sinal de que poderiam entrar e subir. O hall de entrada era estreito e pouco luminoso, e o elevador central em ferro confirmava a idade avançada do edifício. Um receio inocente e anormal fê-los evitar o ascensor, tendo subido pelas escadas em caracol até ao terceiro piso. As tábuas da escada e, em seguida do corredor, a estrugir à medida que os seus pesos exerciam força sobre elas anunciavam à senhoria a aproximação dos dois possíveis inquilinos, pensava ela. A senhora encaminhou-os ao terceiro esquerdo, do outro lado do corredor, à medida que lhes ia explicando que, inesperadamente, o antigo inquilino do apartamento terá sumido, foi mesmo este o termo utilizado, e como já não aparecia nem dava notícias há alguns meses, ela terá resolvido voltar a tentar alugar o apartamento. Como podem ver, o apartamento está em perfeito estado, não cheguei sequer a mexer-lhe desde o desaparecimento do anterior arrendatário, o senhor Alberto, disse a senhora assim que abriu a porta. Assim nos parece, respondeu o senhor mais baixo.


O tapete da entrada tinha forma de meia-lua com bem-vindo escrito, e encontrava-se meticulosamente enquadrado, com a base paralela à entrada da porta e com o ponto central, que se achava traçando um raio perpendicular à base, do centro ao limite da circunferência, tangente à linha que separava duas das tábuas do assoalhado. Estão à vontade, ouviu-se a senhora dizer. A avaliar pelas informações da senhora, que não teria mexido em nada, o apartamento tinha um aspecto invulgarmente anónimo. Tudo o que preenchia aquele espaço, como móveis, jarros, quadros, estava disposto em figuras geométricas, parecendo haver um gosto especial pelos ângulos rectos, pois traçadas várias linhas imaginárias a unir os vários artifícios, estas formavam sempre este tipo de ângulos. Aparentemente, nenhuma peça estaria desalinhada. Tirando esta arrumação inusitada, nada enunciava aqui a presença de alguém. Era como um quarto de hotel, de ninguém e para todos, em que assim que se deixa vêm apagar a nossa presença de lá. Nenhum objecto, ou nenhum objecto pessoal, manifestava a presença de Alberto. Uma gaveta mal fechada do armário, que produzia ali o mesmo efeito que uma nota mal tocada numa composição musical, despertou o interesse do senhor mais alto. Este aproximou-se e abriu-a, onde encontrou um pequeno caderno género moleskine que prontamente guardou dentro do bolso da gabardina, sem que tanto o seu colega como a senhoria notassem. Agora não era a altura apropriada para examinar o caderno, pensou.


Na parede da porta, via agora enquanto se encaminhavam para a saída, descansava um quadro com a representação de um girassol. Tem aqui um quadro muito interessante, disse o senhor mais alto à senhoria. Sabia que num girassol, o número de espirais opostas, que formam as inflorescências na flor, são sucessores na sequência de Fibonacci? Não, mas sabia que tinham uma disposição singular, que eu aprecio, respondeu-lhe a senhora. Se calhar foi por isso que Van Gogh decidiu desenhar um quadro de girassóis, já pensou? Isso nunca o saberemos, sorriu-lhe de volta a senhora. Pois bem, entraremos em contacto consigo mais tarde, caso decidamos por nos acomodar aqui, mentiu-lhe o senhor mais baixo, pois não pretendiam.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Diegese - O Salão de Chá

Durante a viagem de carro ouvia-se apenas o barulho enferrujado e cíclico das escovas a limparem as gotas de chuva que fugiam apressadamente para as extremidades do pára-brisas. À chegada ao café Rota do Oriente, a chuva caía ainda de forma intensa. No tempo que perderiam a abrir o guarda chuva, molhar-se-iam mais do que se optassem por atravessar o passeio, a correr até à porta. O ambiente morno e de pouca luz, parecia bucólico e indolente, característico de uma casa de chás decorada a tapeçarias da Índia, em que se viam e cheiravam todos aqueles vapores aromatizados a especiarias orientais. Os dois entraram no salão, perscrutando o espaço com o olhar como se procurassem alguém. A empregada que veio à porta para os receber perguntou se desejavam tomar alguma coisa, indicando-lhes que poderiam ocupar a mesa do canto, ao fundo, próxima da janela. O senhor mais alto tirou o chapéu e sacudiu-o, antes de o pousar no bengaleiro. A água, retida pela fina malha de tecido na superfície do chapéu de coco, desprendia-se agora no ponto em que o movimento do chapéu era invertido. Apesar do salão ser frequentado por muita gente, a presença dos dois desconhecidos adquirira um contorno quase sinistro, a julgar pelos olhares dos clientes que já se encontravam na casa. A empregada aproximou-se da mesa que eles tinham ocupado e, antes que começasse a formular a questão, foi interrompida por um ainda não decidimos, obrigado, ao que respondeu como desejarem, afastando-se. Ao ler o menu, poderia afirmar que tinha sido escrito com o tipo de letra Georgia, e pensava agora se aquele tipo de letra se adequava realmente a uma casa de chás. Este menu ficaria mais atractivo se tivesse sido escrito em Iskoola Pota, não achas? Mais atractivo não digo, mas por certo estaria mais em sintonia com o ambiente, respondeu o senhor mais alto. Este optou por beber um comum chá de maçã, sendo que o seu colega se decidiu por um da categoria Oolong, de sabor a flor de baunilha, por achar esse um nome interessante para uma categoria de chás. Até então desconhecia que existiam categorias de chás, nunca tendo realmente pensado muito sobre isso. Os chás vinham servidos numa bandeja bastante trabalhada, assim como os copos, onde se poderia distinguir uma fina linha dourada no bordo. Assim que verteu um pouco do seu chá Oolong para um dos copos, um aroma bastante suave e doce inundou-lhe o olfacto, ao que ele respondeu inadvertidamente com uma inspiração mais prolongada e profunda, de olhos fechados. O vapor que saía dos copos continuava a subir e misturara-se um com o outro numa forma condensada no vidro da janela. Maçã e flor de baunilha Oolong, esta será seguramente a janela mais perfumada que já vi, pensou. Enquanto se detinha nestes pensamentos, algo que lhe pareceu familiar do outro lado da janela trouxe-o de volta à casa de chá e ao propósito da sua visita. Aquelas cortinas não te parecem familiares, perguntou ao seu colega que bebia o chá de maçã com cara de desengano. Não, por acaso não as estou a reconhecer de lado nenhum, respondeu depois de virar a cara em direcção ao exterior. Peço desculpa, disse dirigindo-se à empregada, mas corrija-me se estiver enganado, aquela janela do terceiro andar é da casa do senhor Alberto Sequeira, não é? A empregada demorou-se nos seus pensamentos, como que vasculhando o seu arquivo desordenado de memórias, sim, quase de certeza que é, creio tê-lo visto uma vez naquela janela, agora que fala disso. Ambos acabaram delongadamente e em silêncio as suas bebidas antes de deixarem o salão. Não devia ter pedido chá de maçã, disse à saída o senhor mais alto, sem se dirigir a alguém em especial.