sábado, 13 de junho de 2009

Diegese - As Indiscrições das Cores

Era ainda cedo e, como tal, o senhor mais alto acabou por regressar ao Hotel onde se tinha hospedado antes de chegar à vila, a pé. Pelo caminho, a frase era uma forma de assinalar a sua presença que lera no caderno de Alberto ainda ecoava na sua cabeça. As pedras da calçada por onde seguia o seu percurso eram relativamente grandes, permitindo-lhe, absorto que ia, caminhar sem pisar a união entre cada duas. Fazia-o por razão nenhuma em especial desde que se lembrava de caminhar, e podia reparar, neste caso da Rua Calçada do Oriente, que as pedras não tinham todas as mesmas dimensões, pois a cada três passos, a menos que lhes alternasse a amplitude, pisasava uma junção. Ou a amplitude dos seus passos variava involuntariamente enquanto caminhava - o que lhe parecia uma razão menos verosímil. O final da Rua coincidia com um parque junto ao Rio, pontilhado de árvores que começavam agora a florir e a cobrir de sombra cada espaço. Junto a um banco onde dois idosos jogavam xadrez estava um outro banco livre, que o senhor mais alto se decidira a ocupar. Enquanto passava em frente aos idosos não pudera, porém, deixar de reparar no jogo - achara aquele movimento do cavalo uma total imprudência se se quisesse sair vitorioso, mas ganhar não deveria ser o principal objectivo daquele jogo, pensou. Já no banco, voltou a retirar do bolso o caderno que trouxera de casa de Alberto, abrindo-o mais uma vez aleatoriamente - cá fora, no jardim, o cheiro a primavera distinguia-se do odor bolorento do caderno.

« : sem título.

A minha figura perdida ao espelho, a camisa manchada de sangue, uma tonalidade surreal. Tão sozinho como quando estou contigo, colapso em meu redor distante de tudo. Cai mais neve escura dentro de mim na combinação erótica de ambas, o coração a sangrar. As areias geladas da praia, o barulho do mar é ensurdecedor, uma elegância comovente. Não consigo voltar a encontrar dentro da tempestade, aperto até ao pescoço. O profundo olhar azul e quente, tudo se apaga em branco e flocos de luz e eu digo devias ver isto.

Devias ver isto, com a sua voz nectarina num travo de sincero entusiasmo, para imaginar a deixar pegadas pequeninas pela praia. Mas penso enquanto um abandono de mim próprio. A voz dela, o som dos seus passos na areia gelada, a silhueta azul da cidade ao anoitecer. Tudo misturado sobre os seus cabelos loiros é uma imagem insuportavelmente bela. As palavras cortantes de frio, não posso, não quero, não sei, não consigo perceber. Começa a cair neve ou branco puro de açúcar, e faz frio e é de noite. O ruído do oceano, a música a fazer vibrar a pele até doer. Apetece-me um cigarro sem esperar a certeza de que no mundo existe alguém para quem sou imprescindível. Não faz frio.
»

O senhor mais alto acabou de ler o texto e deixou-se ficar a olhar o cais, alheado durante algum tempo no azulado do anoitecer, ao longe ao fundo. No banco ao lado o idoso da jogada imprudente acabara de fazer cheque-mate ao rei do seu adversário.

Um comentário:

cristina says: disse...

hmm... tenho aqui muito que ler!