sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Diegese - A transitoriedade de Ser

Já era de noite quando o senhor mais alto resolveu deixar o jardim e dirigir-se ao Hotel, pelo caminho mais próximo. Dos candeeiros derramava uma luz amarelada e trémula, iluminando o passeio, a espaços, em pequenos círculos perfeitos. A rua apresentava-se silenciosa e sossegada, e quem por lá passasse não podia deixar de ser contaminado com tamanha melancolia e quietude. Quase no final da rua um desconhecido ocupava a cabine telefónica: a luz da cabine brilhava com uma espécie de tremor constante e o desconhecido, sentado no canto da cabine, apoiava os braços nos joelhos, e a palma da mão a segurar-lhe cabeça, de forma a que lhe fosse possível comunicar. Ao passar, o senhor mais alto olhara com compaixão enquanto pensava que, para aquele desconhecido, a certeza de que no mundo haveria alguém para quem ele era imprescindível se tinha desmoronado ali mesmo. Chegado ao Hotel, dirigira-se de imediato ao seu quarto, o 703, de cansado que estava. No elevador, ao premir o botão 7, questionara-se do porquê de muitos hotéis usarem este método como numeração, em que o primeiro número corresponde ao andar, e os segundos, ao número da quarto, fazendo com que os hoteis tenham oitocentos e muitos quartos quando, na verdade, se ficavam pelos oitenta, se tanto. Era um dúvida totalmente inútil, bem o sabia, e pouco lhe interessava se essa numeração era apenas uma questão logística, mas foi o que na altura lhe ocorrera ao escolher o andar no elevador. Já no seu quarto, retirara o caderno que trazia no bolso e despojara-se para cima da cama. O caderno abrira-se numa página, a meio:


« sexta-feira, 17 de Setembro: uma clássica conspiração de Outono

o tempo muda tudo. caiem as folhas e surgem os esquecidos pensamentos. escapa-se-nos a sensualidade como ainda aquelas dúvidas inquietantes e, de um local opcional, todos nos deparamos com o que sobrou, efémero contraste do que foi e do que deveria ter sido. a mais-valia do momento à lareira do eu, é outono e não quero mais ter que sair de casa. as folhas caiem e também eu quero poder apenas ser e que isso não signifique nada mais para além disso.

sem imposições, quero rir porque sim. cada um é o espelho de si mesmo, assumo o meu reflexo e ele é apenas meu.
espero do equinócio a revolução, e que as nossas cabeças continuem redondas apenas para os pensamentos poderem mudar de direcção.»


Ainda pensou telefonar ao seu colega e falar-lhe do que lera no caderno de Alberto, mas assim que o fechou este caíra-lhe das mãos, bem como o sentido da ideia. Na sua cabeça os pensamentos atropelavam-se, e isto quereria dizer, pensara ele, que os seus pensamentos andavam em direcções opostas, e mudavam de direcção, e que a sua cabeça continuava redonda. O tempo tudo muda. Esta frase ecoava-lhe na cabeça, e achara que a devia ter dito ao desconhecido da cabine. Adormecera.

sábado, 13 de junho de 2009

Diegese - As Indiscrições das Cores

Era ainda cedo e, como tal, o senhor mais alto acabou por regressar ao Hotel onde se tinha hospedado antes de chegar à vila, a pé. Pelo caminho, a frase era uma forma de assinalar a sua presença que lera no caderno de Alberto ainda ecoava na sua cabeça. As pedras da calçada por onde seguia o seu percurso eram relativamente grandes, permitindo-lhe, absorto que ia, caminhar sem pisar a união entre cada duas. Fazia-o por razão nenhuma em especial desde que se lembrava de caminhar, e podia reparar, neste caso da Rua Calçada do Oriente, que as pedras não tinham todas as mesmas dimensões, pois a cada três passos, a menos que lhes alternasse a amplitude, pisasava uma junção. Ou a amplitude dos seus passos variava involuntariamente enquanto caminhava - o que lhe parecia uma razão menos verosímil. O final da Rua coincidia com um parque junto ao Rio, pontilhado de árvores que começavam agora a florir e a cobrir de sombra cada espaço. Junto a um banco onde dois idosos jogavam xadrez estava um outro banco livre, que o senhor mais alto se decidira a ocupar. Enquanto passava em frente aos idosos não pudera, porém, deixar de reparar no jogo - achara aquele movimento do cavalo uma total imprudência se se quisesse sair vitorioso, mas ganhar não deveria ser o principal objectivo daquele jogo, pensou. Já no banco, voltou a retirar do bolso o caderno que trouxera de casa de Alberto, abrindo-o mais uma vez aleatoriamente - cá fora, no jardim, o cheiro a primavera distinguia-se do odor bolorento do caderno.

« : sem título.

A minha figura perdida ao espelho, a camisa manchada de sangue, uma tonalidade surreal. Tão sozinho como quando estou contigo, colapso em meu redor distante de tudo. Cai mais neve escura dentro de mim na combinação erótica de ambas, o coração a sangrar. As areias geladas da praia, o barulho do mar é ensurdecedor, uma elegância comovente. Não consigo voltar a encontrar dentro da tempestade, aperto até ao pescoço. O profundo olhar azul e quente, tudo se apaga em branco e flocos de luz e eu digo devias ver isto.

Devias ver isto, com a sua voz nectarina num travo de sincero entusiasmo, para imaginar a deixar pegadas pequeninas pela praia. Mas penso enquanto um abandono de mim próprio. A voz dela, o som dos seus passos na areia gelada, a silhueta azul da cidade ao anoitecer. Tudo misturado sobre os seus cabelos loiros é uma imagem insuportavelmente bela. As palavras cortantes de frio, não posso, não quero, não sei, não consigo perceber. Começa a cair neve ou branco puro de açúcar, e faz frio e é de noite. O ruído do oceano, a música a fazer vibrar a pele até doer. Apetece-me um cigarro sem esperar a certeza de que no mundo existe alguém para quem sou imprescindível. Não faz frio.
»

O senhor mais alto acabou de ler o texto e deixou-se ficar a olhar o cais, alheado durante algum tempo no azulado do anoitecer, ao longe ao fundo. No banco ao lado o idoso da jogada imprudente acabara de fazer cheque-mate ao rei do seu adversário.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Diegese - A Denúncia dos Gestos

Os dois homens deixaram o edifício onde morou Alberto sem pressas, tendo-se decidido ainda, dada a sugestão do senhor mais alto, por passar na casa Salão de Chá. A última passagem dos dois senhores pelo salão deixara o senhor mais alto bastante insatisfeito com o seu pedido de chá de sabor a maçã e, desde então, tinha vontade de provar um outro sabor mais exótico, tão bem lhe tinha falado o seu companheiro. O senhor mais baixo anui em ir, sem suspeitar sequer que esta volta ao salão tinha outro propósito além de tomar um chá: tratava-se antes de tomar outro chá. Não que tivessem um interesse especial em sentar-se na mesma mesa que ocuparam na primeira vinda ao Salão de Chá mas, como se encontrava ocupada por duas senhoras, optaram por uma das mesas vizinhas, a da esquerda. Hoje vou querer algo mais natural, disse o senhor mais baixo e, dirigindo-se à empregada, pediu um chá de canela. Pelo menos já sei que gosto, disse. Por sua vez, o senhor mais alto, depois de vasculhar no menu, pediu um chá preto de LapSang SouChong, pois na descrição dizia que era um chá com sabor fumado, fosse lá o que fosse. Assim que acabaram as suas bebidas, o senhor mais baixo informou que não se podia demorar muito mais, que tinha que ir, ao que o seu colega respondeu que sim, tudo bem, eu ainda fico um pouco mais então. Este ainda ficou recostado na cadeira a saborear o sabor fumado do seu chá algum tempo e, passados alguns minutos, levou a mão ao bolso e tirou o caderno que encontrara na antiga casa de Alberto. Colocou-o sobre a mesa e, quase com ar indolente, foi brincando, com ele, vendo que posições lhe pareciam melhor: se do lado direiro da chávena - agora quase vazia -, se paralelo aos bordos da mesa, se virado com a base para ele; brincava como que a adiar o abrir do caderno, que se tornava inevitável. Ainda antes de o abrir, pegou-lhe e folheou-o do inicio ao fim, permitindo-o a libertar um odor a folhas velhas, e escritas. Ao fazê-lo lembrou-se porém de uma vez, numa livraria, que não comprara um livro que lhe tinham aconselhado porque não gostara do odor das suas folhas. Era o Dr. Jivago de Boris Pasternak, que ainda não tinha lido. Por fim, abriu aleatoriamente o caderno numa das páginas iniciais.


«terça-feira, 27 de Abril
: [ilegível]

hoje, antes de regressar a casa, parei, inusitadamente, no Salão de Chá, mesmo em frente da minha porta. pedi um chá. encontrei por lá o meu vizinho de baixo, de quem desconheço o nome. encontrei-o uma vez na escadas do prédio, tendo-lhe dito bom dia por essa ocasião, sendo que desde então não mais voltámos a cruzar-nos, e a falar tão pouco. estava acompanhado de uma rapariga que tinha ares de ser um pouco mais nova que ele. achei-o algo estranho e inquietante. no final de beber o chá, despejou o resto do açúcar para dentro da chávena e continuou a mexer com a colher casualmente, e não para a direita, como fez com o chá. conheço poucas pessoas que mexam o chá para a direita. pensando bem, acho que também não o conheço a ele. por diversas vezes levou a mão à boca, ora a direita ora a esquerda, quando se ria um pouco mais alto. quando ameaçavam ficar em silêncio por vários minutos, a sua perna direita começava a mexer ciclicamente, denunciando o que parecia ser um leve incómodo da sua parte. por esta altura começava a mexer o açúcar com mais vigor também. creio que os silêncios o deixam desconfortável. [ilegível] é cheio de idiossincrasias o meu vizinho. o açúcar deixado na chávena, e o pacote enrolado em forma de palito; a chávena com a asa voltada para a janela e o pires sujo com a bebida; os guardanapos usados, juntos em forma de bola. reconhecê-lo-ia pela mesa onde tivesse estado: era uma forma de assinalar a sua presença.»

A última frase do texto era também ilegível. Ainda tentou decifrar o que estava escrito, mas em vão. Posto isto, fechou o caderno e meteu-o de novo no bolso, demorando-se em algumas das razões que tivessem levado Alberto, que vivera no anonimato do seu apartamento, a reparar no seu vizinho. Levantou-se, e apercebeu-se que também ele tinha despejado o restante açúcar para a chávena de chá.

domingo, 1 de março de 2009

Nota de Rodapé - Aniversário

Por imediações destes dias é o 45º aniversário de Alberto - o seu paradeiro incógnito não parece motivo suficientemente forte para transpor o verbo para o condicional.

Ter nascido a 29 de Fevereiro obrigava as pessoas, aquelas que o faziam, durante quatro consecutivos anos, a parabentear Alberto ontem, dia 28 de Fevereiro, ou hoje, 1 de Março, ficando a escolha ao critério de cada um. No entanto, nem num o argumento de que felicitar antes do dia dá azar, nem no outro, o lamento de se terem esquecido fariam muito sentido. Para mais, Alberto não era de todo supersticioso, o único ritual que cumpria obstinadamente era o de entrar sempre, sempre, com o pé direito em qualquer divisão em que entrasse pela primeira vez, ou onde, de certo modo, algo de importante estivesse prestes a acontecer - isto apesar de preferir o lado esquerdo das coisas; depois, também não era costume de Alberto felicitar aniversariantes com muita frequência, pois raramente criava amizades com as pessoas ao ponto de lhes poder dizer "Feliz Aniversário!", sem se sentir algo incomodado e constrangido.

Assim, e como qualquer das datas parece perfeitamente oportuna, "Feliz Aniversário!"

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Diegese - Os Girassóis de Fibonacci

Três dias se passaram desde a passagem dos dois homens pelo Salão de Chá.


Eram por volta das quinze horas quando fizeram soar a campainha do 3º direito, onde morava a antiga senhoria de Alberto. O prédio encontrava-se do lado oposto ao Salão de Chá, reparavam-no agora, que já conheciam o outro lado da rua. Então é aqui que morou Alberto?, perguntou em jeito retórico o senhor mais alto, enquanto se aproximava da porta e examinava com o olhar a fachada. Até então, este era um edifício em tudo igual a todos os outros, e poderia ser o edifício onde teria morado qualquer pessoa. Era assim que lhe pareciam os prédios e casas de quem ignorava quem os habitava. Agora, era o edifício onde morou Alberto.
Sim?, quem é?
, ouviram pelo intercomunicador. Boa tarde. Ando à procura de casa para alugar e vi no jornal que dispunha de um apartamento, gostaria de poder vê-lo, se possível, obrigado. Sim, tenho um apartamento livre de momento, suba que lho mostrarei, respondeu a senhora. Pela voz deveria andar pelos 50 anos, talvez mesmo mais, e morava sozinha desde algum tempo, poderia afirmá-lo. Um ruído arranhado e metálico era o sinal de que poderiam entrar e subir. O hall de entrada era estreito e pouco luminoso, e o elevador central em ferro confirmava a idade avançada do edifício. Um receio inocente e anormal fê-los evitar o ascensor, tendo subido pelas escadas em caracol até ao terceiro piso. As tábuas da escada e, em seguida do corredor, a estrugir à medida que os seus pesos exerciam força sobre elas anunciavam à senhoria a aproximação dos dois possíveis inquilinos, pensava ela. A senhora encaminhou-os ao terceiro esquerdo, do outro lado do corredor, à medida que lhes ia explicando que, inesperadamente, o antigo inquilino do apartamento terá sumido, foi mesmo este o termo utilizado, e como já não aparecia nem dava notícias há alguns meses, ela terá resolvido voltar a tentar alugar o apartamento. Como podem ver, o apartamento está em perfeito estado, não cheguei sequer a mexer-lhe desde o desaparecimento do anterior arrendatário, o senhor Alberto, disse a senhora assim que abriu a porta. Assim nos parece, respondeu o senhor mais baixo.


O tapete da entrada tinha forma de meia-lua com bem-vindo escrito, e encontrava-se meticulosamente enquadrado, com a base paralela à entrada da porta e com o ponto central, que se achava traçando um raio perpendicular à base, do centro ao limite da circunferência, tangente à linha que separava duas das tábuas do assoalhado. Estão à vontade, ouviu-se a senhora dizer. A avaliar pelas informações da senhora, que não teria mexido em nada, o apartamento tinha um aspecto invulgarmente anónimo. Tudo o que preenchia aquele espaço, como móveis, jarros, quadros, estava disposto em figuras geométricas, parecendo haver um gosto especial pelos ângulos rectos, pois traçadas várias linhas imaginárias a unir os vários artifícios, estas formavam sempre este tipo de ângulos. Aparentemente, nenhuma peça estaria desalinhada. Tirando esta arrumação inusitada, nada enunciava aqui a presença de alguém. Era como um quarto de hotel, de ninguém e para todos, em que assim que se deixa vêm apagar a nossa presença de lá. Nenhum objecto, ou nenhum objecto pessoal, manifestava a presença de Alberto. Uma gaveta mal fechada do armário, que produzia ali o mesmo efeito que uma nota mal tocada numa composição musical, despertou o interesse do senhor mais alto. Este aproximou-se e abriu-a, onde encontrou um pequeno caderno género moleskine que prontamente guardou dentro do bolso da gabardina, sem que tanto o seu colega como a senhoria notassem. Agora não era a altura apropriada para examinar o caderno, pensou.


Na parede da porta, via agora enquanto se encaminhavam para a saída, descansava um quadro com a representação de um girassol. Tem aqui um quadro muito interessante, disse o senhor mais alto à senhoria. Sabia que num girassol, o número de espirais opostas, que formam as inflorescências na flor, são sucessores na sequência de Fibonacci? Não, mas sabia que tinham uma disposição singular, que eu aprecio, respondeu-lhe a senhora. Se calhar foi por isso que Van Gogh decidiu desenhar um quadro de girassóis, já pensou? Isso nunca o saberemos, sorriu-lhe de volta a senhora. Pois bem, entraremos em contacto consigo mais tarde, caso decidamos por nos acomodar aqui, mentiu-lhe o senhor mais baixo, pois não pretendiam.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Diegese - O Salão de Chá

Durante a viagem de carro ouvia-se apenas o barulho enferrujado e cíclico das escovas a limparem as gotas de chuva que fugiam apressadamente para as extremidades do pára-brisas. À chegada ao café Rota do Oriente, a chuva caía ainda de forma intensa. No tempo que perderiam a abrir o guarda chuva, molhar-se-iam mais do que se optassem por atravessar o passeio, a correr até à porta. O ambiente morno e de pouca luz, parecia bucólico e indolente, característico de uma casa de chás decorada a tapeçarias da Índia, em que se viam e cheiravam todos aqueles vapores aromatizados a especiarias orientais. Os dois entraram no salão, perscrutando o espaço com o olhar como se procurassem alguém. A empregada que veio à porta para os receber perguntou se desejavam tomar alguma coisa, indicando-lhes que poderiam ocupar a mesa do canto, ao fundo, próxima da janela. O senhor mais alto tirou o chapéu e sacudiu-o, antes de o pousar no bengaleiro. A água, retida pela fina malha de tecido na superfície do chapéu de coco, desprendia-se agora no ponto em que o movimento do chapéu era invertido. Apesar do salão ser frequentado por muita gente, a presença dos dois desconhecidos adquirira um contorno quase sinistro, a julgar pelos olhares dos clientes que já se encontravam na casa. A empregada aproximou-se da mesa que eles tinham ocupado e, antes que começasse a formular a questão, foi interrompida por um ainda não decidimos, obrigado, ao que respondeu como desejarem, afastando-se. Ao ler o menu, poderia afirmar que tinha sido escrito com o tipo de letra Georgia, e pensava agora se aquele tipo de letra se adequava realmente a uma casa de chás. Este menu ficaria mais atractivo se tivesse sido escrito em Iskoola Pota, não achas? Mais atractivo não digo, mas por certo estaria mais em sintonia com o ambiente, respondeu o senhor mais alto. Este optou por beber um comum chá de maçã, sendo que o seu colega se decidiu por um da categoria Oolong, de sabor a flor de baunilha, por achar esse um nome interessante para uma categoria de chás. Até então desconhecia que existiam categorias de chás, nunca tendo realmente pensado muito sobre isso. Os chás vinham servidos numa bandeja bastante trabalhada, assim como os copos, onde se poderia distinguir uma fina linha dourada no bordo. Assim que verteu um pouco do seu chá Oolong para um dos copos, um aroma bastante suave e doce inundou-lhe o olfacto, ao que ele respondeu inadvertidamente com uma inspiração mais prolongada e profunda, de olhos fechados. O vapor que saía dos copos continuava a subir e misturara-se um com o outro numa forma condensada no vidro da janela. Maçã e flor de baunilha Oolong, esta será seguramente a janela mais perfumada que já vi, pensou. Enquanto se detinha nestes pensamentos, algo que lhe pareceu familiar do outro lado da janela trouxe-o de volta à casa de chá e ao propósito da sua visita. Aquelas cortinas não te parecem familiares, perguntou ao seu colega que bebia o chá de maçã com cara de desengano. Não, por acaso não as estou a reconhecer de lado nenhum, respondeu depois de virar a cara em direcção ao exterior. Peço desculpa, disse dirigindo-se à empregada, mas corrija-me se estiver enganado, aquela janela do terceiro andar é da casa do senhor Alberto Sequeira, não é? A empregada demorou-se nos seus pensamentos, como que vasculhando o seu arquivo desordenado de memórias, sim, quase de certeza que é, creio tê-lo visto uma vez naquela janela, agora que fala disso. Ambos acabaram delongadamente e em silêncio as suas bebidas antes de deixarem o salão. Não devia ter pedido chá de maçã, disse à saída o senhor mais alto, sem se dirigir a alguém em especial.