sábado, 13 de dezembro de 2008

Diegese - O Guarda-fatos

A luz entra em tons amarelados de Outono pela fresta da porta e eu deixo que ela se sente a meu lado. Risco um fósforo com que acendo o cigarro e inspiro avidamente o fumo, que me enche os pulmões. É estranho como o fumo não existe sozinho e resulta da transformação de algo pelo fogo, penso. É como se fosse a condição incontornável para a mudança, o preço a pagar para se ser das cinzas. Continuo a inspirar e bato o cigarro no limiar do cinzeiro, fazendo cair as cinzas como se fossem as roupas que trago vestidas. Deixo à mostra as que trazia por baixo, que são iguais, pois só tenho esta camisa ao xadrez desbotada. O guarda-roupa dos meus dias é fogo-fátuo e dele não se vê verdadeiramente sair fumo.

O cigarro extingue-se e, com ele todos estes pensamentos. Dobro o guardanapo e guardo-o dentro do maço, onde só resta um último cigarro.

Além do inquietante manuscrito rasgado descoberto em sua casa, e deste encontrado dentro do maço, muito pouco se sabia mais acerca de Alberto. Junto com este segundo manuscrito encontrava-se também uma pequena caixa de fósforos, daquelas que se têm de partir os fósforos para se poder riscar, onde se lia “Casa de Chá Rota da Seda, Calçada do oriente, nº17” no verso; na parte da frente, uma personagem de turbante azul montando um elefante de cor branco. Poderia deduzir-se, pelo traço incerto e estouvado da sua caligrafia, que algo o perturbava por alturas do seu desaparecimento. Uma análise mais profunda do seu estado poderia ter sido feita se caso se tivesse entregado os originais dos textos a um qualquer entendido em caligrafias, mas as mensagens, por si só, já levantavam reticências bastantes. Estranhamente, a casa de Alberto terá sido encontrada em perfeito estado de arrumação e limpeza, com excepção do já referido maço. A janela encontrava-se agora aberta de par em par, com as cortinas a dançarem periodicamente ao sabor do vento, deixando entrar a luz que sobrevinha, em forma de quadrado cortado pela sombra dos cortinados, na outra extremidade da divisão, onde se podia ver um roupeiro com alguns cabides vazios. Um olhar mais atento ao guarda-fatos descobria, no canto mais brindado pela sombra, uma camisa ao xadrez solta no chão com indícios de ter sido queimada.

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